6 de fev. de 2014

EAD: Antes e depois da cibercultura

O presente texto* advoga a ideia de que o advento da cibercultura traz vastas possibilidades para se repensar as hegemônicas práticas de Educação a Distância (EAD). Inicia-se com uma brevíssima retomada histórica das principais mídias utilizadas na EAD, no Brasil, e prossegue com considerações sobre a cibercultura, com o intuito de destacar sua contribuição para a elaboração de cursos mais intertextuais, hipermidiáticos, dialógicos e coautorais. 

Estudos sobre a história da EAD no Brasil (BARROS, 1994; GIUSTA, 2002) evidenciam que essa modalidade iniciou-se nas proximidades da década de 1940. A Fundação do Instituto Rádio-Monitor, o Instituto Universal Brasileiro e o Projeto Minerva configuram-se como os marcos históricos daquela época. Pautada notadamente em material impresso, a primeira geração da EAD no Brasil cumpriu os fins a que se destinava: promover acesso ao conhecimento socialmente legitimado a segmentos sociais menos favorecidos, mediante ações de educação formal e não formal. Além do material impresso, o rádio também se situou como importante difusor dos cursos oferecidos na EAD da época.

Com a chegada das fitas e vídeos cassete, a EAD incorporou estes dispositivos ao desenho didático de seus cursos, com materiais instrucionais que, a partir de então, também faziam uso destas mídias, em complemento ao rádio e ao material impresso. Anos mais tarde, o CD e o DVD viriam a cumprir, respectivamente, as funções da fita e do vídeo cassete. Entretanto, apesar da chegada desses dispositivos midiáticos, a lógica da mídia de massa predominava nos cursos desenvolvidos em EAD, pois eles ainda eram pensados a partir de uma abordagem instrucionista, em que o aluno seguia seu percurso de formação, com o apoio dos materiais autoinstrucionais e, eventualmente, contava com algum tipo de interação com a equipe de formação, por carta ou telefone.

Somente com a chegada da Internet é que foi possível começar a se pensar em desenhos didáticos que pudessem contemplar processos interativos entre formandos e formadores, via fóruns e listas de discussão. Contudo, a primeira geração da Internet ainda não permitia a vivência plena da dialogia digital e da mediação partilhada (PESCE & BRUNO, 2007) entre professores e alunos, pois aos estudantes cabia acessar as informações do curso e, no melhor dos casos, interagir com o professor e com seus colegas de modo assíncrono, via fóruns e listas de discussão. A vivência do conceito de coautoria ainda não se pronunciava.

Com a segunda geração da Internet, a chamada Web 2.0, é que a cibercultura se consolida. Com a chegada da Web 2.0, a arquitetura intertextual, hipermidiática, dialógica e coautoral da cibercultura pôde ser pensada com mais propriedade no âmbito educacional. Na cibercultura veiculada na Web 2.0, o usuário insere-se como produtor e desenvolvedor de conteúdo e não somente como receptor de mensagem e/ou conteúdo de aprendizagem postado por outrem. A cibercultura, ao conjugar texto, áudio, imagem, animação e vídeo, assume uma natureza hipermidiática, que potencializa as formas de publicação, compartilhamento e organização de informações e amplia os espaços de interação (PRIMO, 2008). 

Para Pierre Lévy (1997), analogamente à escrita e à imprensa, as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) trazem consigo um novo modo de pensar o mundo e de conceber as relações com o conhecimento. Nesse cenário, a simulação levanta-se como modo de conhecimento próprio da cibercultura. Os games e ambientes imersivos, como Second Life, ratificam a oportuna observação de Lévy e podem ser levados em conta na elaboração de desenhos didáticos de cursos em EAD.

Lucia Santaella (2004) salienta que a interação insere-se na medula dos processos cognitivos, nos ambientes de rede. Ao destacar que o dialogismo traz nova luz para se compreender a interatividade e seu papel no desenvolvimento do perfil cognitivo do leitor imersivo, a pesquisadora declara: “(...) assim como as operações realizadas no ciberespaço externalizam as operações da mente, as interatividades nas redes externalizam a essência mais profunda do dialogismo” (SANTAELLA, 2004, p. 172). 

No contexto coautoral e criativo das “linguagens líquidas” da cibercultura (SANTAELLA, 2007) formam-se as redes sociais: fenômeno que tanto impacto vem causando às atuais organizações societárias, por se opor diametralmente à indústria cultural (ADORNO & HORKHEIMER, 1985). Para Antoun (2008), em contraposição à mídia irradiada, as redes sociais da cibercultura promovem comunidades de atividade ou interesse, graças à democratização não só do acesso à informação, mas também da publicação de produções e da ‘vigilância participativa’ – termo por ele designado para se referir ao conjunto das expressões de opinião postadas como comentários, nos ambientes digitais.

Costa (2008) sinaliza o sentimento de confiança mútua como um dos aspectos basilares da consolidação das redes sociais na cibercultura. Em concordância com Lévy (2002), o pesquisador salienta a relevância das redes sociais, pela capacidade de ação e potencialidade cooperativa. Em nosso entendimento, tais atributos materializam-se, por exemplo, quando cidadãos de Estados totalitários utilizam os dispositivos da cibercultura para “burlar” a censura e mostrar ao mundo os despotismos de seu país. O estudioso finaliza advertindo que o fenômeno social da Web 2.0 nos força a pensar em outras formas de nos organizarmos em comunidades. Parafraseando Costa (ibid), salientamos que a cibercultura demanda da educação novos modos de organização.

Ao pensar a Educação a partir do advento da cibercultura, trazemos Valente (1999), que distingue três abordagens na EAD. Na abordagem broadcast, o professor transmite a informação, via aparato tecnológico; daí sua proximidade com a concepção instrucionista. Esta abordagem consagra-se pelo apelo econômico; ou seja, pela possibilidade de se promover cursos financeiramente convidativos. Na “virtualização da sala de aula presencial”, o professor transfere para o espaço virtual a mesma dinâmica da aula presencial. Esta abordagem é muito comum, pela tendência dos formadores a transpor a dinâmica dos cursos presenciais para o contexto digital, sem as devidas readequações. Por sua vez, a abordagem “estar junto virtual” contempla a dinâmica comunicacional, que privilegia a mediação do professor junto ao aluno, por meio da tecnologia, para que se realize o ciclo construcionista “descrição-execuçãoreflexão-depuração-descrição”.

Tecnicamente, os dispositivos e interfaces da cibercultura ampliam a possibilidade de se pensar em cursos mais dialógicos em EAD. Entretanto, para que isso ocorra é preciso vontade política. Vontade essa que se revela, por exemplo, na concepção de cursos economicamente não tão convidativos, que preveem uma relação adequada entre formador e alunos (por volta de 1 para 30), por apostarem na importância da formação dialógica (PESCE 2008). Aí incide um exemplo de vontade política de primar pela qualidade educacional, a despeito das possibilidades tecnológicas de se promover cursos em larga escala.

A partir dos aspectos teóricos até então anunciados, sintetizamos nossa reflexão sobre a contribuição da cibercultura para o avanço qualitativo da EAD:
  • A cibercultura acena outra lógica para a EAD, que não a instrumental, pragmática e prescritiva.
  • A cibercultura possibilita a ampliação da perspectiva de alteridade, ao promover vínculos entre sujeitos sociais de distintas culturas, que vivem circunstâncias sóciohistóricas semelhantes (por exemplo: vínculos entre professores da Educação Básica de distintos países). Essa condição é profícua ao enfrentamento esclarecido dos desafios que se lhes apresentam no cotidiano.
  • As redes sociais da cibercultura configuram-se como elemento importante para se subverter o status quo (como exemplo, o uso que tem sido feito pelos cidadãos de alguns países do Oriente Médio para enfrentar os regimes ditatoriais). 
  • A cibercultura oferece a possibilidade de se trabalhar com diferentes dimensões da linguagem (textual, imagética, sonora...), em respeito aos distintos estilos de aprendizagem. Nesse cenário, destacamos o papel da simulação aos processos cognitivos.
  • O registro das interações no ciberespaço traz uma importante contribuição para a metarreflexão do aluno, do professor e do grupo como um todo, sobre o processo de construção do conhecimento, na interface entre as dimensões intra e intersubjetiva.
  • As características coautorais dos dispositivos e interfaces da cibercultura oportunizam a vivência plena da dialogia digital e da mediação partilhada: elementos fundantes da formação de comunidades de aprendizagem, para além dos tempos e espaços da sala de aula.

Conforme dito no início do presente texto, a cibercultura traz vastas possibilidades para se repensar as hegemônicas práticas de EAD. Contudo, além da condição técnica, é preciso vontade política para se imprimir uma racionalidade mais dialógica, capaz de auferir um avanço de fato qualitativo a essa modalidade de educação.

*Artigo de Lucila Pesce. Mestre e doutora em Educação: Currículo pela PUC/SP, com pós-doutorado em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Professora da UNIFESP. 

Fonte: PESCE, Lucila. EAD: Antes e Depois da Cibercultura. In: SANTOS, Edméa (Coord.).
Cibercultura: o que muda na educação. Rio de Janeiro: Programa Salto para o Futuro,
TV Escola, Ano XXI, Boletim 03, abr. 2011. Disponível em: <http://tvbrasil.org.br/fotos/salto/series/212448cibercultura.pdf>.

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