Praticamente todas as análises sobre governança se baseiam na famosa “teoria de agência”, desenvolvida no campo da Economia. A abordagem parte da premissa de que as pessoas optarão por cursos de ação que maximizam seu resultado pessoal, em detrimento do melhor para a companhia. Logo, essa doutrina prevê que o grande risco decorre da potencial ausência de lealdade dos agentes para com os principais.
Entretanto, o pesquisador Randall Morck, da Universidade de Alberta, no Canadá, vem desenvolvendo uma nova visão, baseada na Psicologia Social, com impactos para a governança. Segundo o autor, tão importante quanto o risco da baixa lealdade, é o risco de seu excesso em relação a fortes lideranças empresariais. Morck se baseia em um trabalho da década de 60 relativamente adormecido, porém com implicações relevantes para a compreensão do comportamento humano: os testes de obediência à autoridade realizados por Stanley Milgram.
Após a Segunda Guerra Mundial, ocorreram os famosos julgamentos de Nuremberg. Neles, a defesa alegada pelos nazistas era de que estavam apenas “cumprindo ordens”. Muitos psicólogos ficaram intrigados com essa resposta. Em 1961, Stanley Milgram, então pesquisador de Yale, começou uma série de testes, a fim de investigar o contexto que poderia levar pessoas a uma obediência cega a lideranças.
A ideia era simples: chamava-se um voluntário para um estudo sobre a capacidade de memorização. No experimento, ele recebia orientação de um “cientista” para atar um “membro da comunidade” (na verdade, ambos atores) a uma máquina de eletrochoque e submetê-lo a um teste de memória simples. A cada erro que a pessoa cometesse, deveria aplicar-lhe um choque de 45 volts em ordem crescente de intensidade até o limite de 450 volts.
Antes da pesquisa, Milgram submeteu o projeto a diversos psicólogos. Em média, os experts estimaram que apenas um a cada mil administraria choques até o limite de 450 volts. Os resultados foram chocantes: 26 dos 40 participantes (65%) infligiram choques de até 450 volts, e ninguém parou antes dos 300 volts! A maioria aplicaria um choque letal em um desconhecido apenas em função do pedido de uma autoridade científica, sem que a vítima tivesse cometido qualquer delito relevante. Os testes foram replicados por outros pesquisadores em diversos países, todos com resultados qualitativamente similares.
Milgram concluiu que temos uma natureza intrinsecamente ligada à lealdade, que nos impele a obedecer a uma autoridade em certas circunstâncias. Tendemos a deixar de lado a racionalidade para satisfazer uma liderança reconhecida como legítima, em prol do melhor para o grupo. Ou seja, suspendemos nossa autonomia e simplesmente nos tornamos agentes de outros. Sentimos certa satisfação interior em agir com lealdade perante uma liderança. Isso foi observado nas entrevistas realizadas com os voluntários. E, conforme Milgram, “a vasta maioria (84%) se mostrou contente em ter participado do estudo”.
Na visão de Morck, os estudos de Milgram têm implicações para as análises sobre governança. A lealdade excessiva de executivos ou conselheiros a uma liderança empresarial considerada de sucesso, seja ela um CEO poderoso, empreendedor de sucesso ou controlador, pode acarretar prejuízos significativos às organizações. Tais problemas podem ser, inclusive, maiores do que os da baixa lealdade das pessoas no sentido de maximizar seu ganho pessoal, alvo dos estudos atuais sobre o tema.
No caso dos conselhos, é possível que conselheiros se sintam leais ao líder da empresa muitas vezes com décadas no comando da organização. Afinal, a quem se deve dirigir maior sentimento de lealdade: a um indivíduo próximo e que se dedica integralmente à organização ou a um ente abstrato e anônimo chamado acionista, que, em tese, surge uma vez ao ano nas assembleias? Embora o dever de lealdade para com os acionistas esteja legalmente prescrito, os aspectos humanos inatos e a pressão pela lealdade ao grupo podem levar as pessoas a aceitarem caminhos catastróficos para a organização.
Que mecanismos poderiam ser empregados para abrandar esses riscos? Os próprios experimentos de Milgram fornecem uma pista. Ele observou que a taxa de obediência caía drasticamente em função de três parâmetros: a proximidade — a distância do “cientista” em relação ao voluntário e do voluntário em relação ao “membro da comunidade”; a discordância entre pares — a existência de visões dissonantes entre dois ou mais “professores”; e a presença de uma autoridade rival.
Em relação à proximidade, Milgram simulou uma variação na qual o “cientista” dava ordens por telefone. Nesse caso, a taxa de obediência caía para apenas 21%. Milgram concluiu que “os voluntários parecem ser capazes de resistir mais facilmente às ordens do cientista quando não têm de confrontá-lo frente a frente… a presença física da figura da autoridade é uma força importante”.
Quanto ao segundo aspecto, Milgram introduziu uma variante com três “professores”, sendo apenas um deles o voluntário e dois outros atores. Ao chegar a 150 volts, o primeiro ator deixava o experimento. Ao alcançar 210 volts, o segundo ator também se retirava, deixando o voluntário sozinho. Nesse caso, as taxas de obediência até a voltagem final se reduziram a cerca de um terço. O pesquisador observou que “os efeitos da dissonância de pares são muito impressionantes, minando a autoridade do cientista”.
A terceira variante gerou os resultados mais interessantes. Nela, Milgram introduziu dois cientistas com roupas, idades e alturas idênticas. Ao chegar a 150 volts, um dos cientistas passava a discordar do outro, alegando que o estudo não deveria prosseguir. De forma impressionante, a taxa de obediência após 150 volts caiu para zero! Quando inseridos no meio de uma discussão entre duas autoridades rivais, os voluntários recobravam a racionalidade, poupando a vítima de choques elétricos perigosos.
As variantes dos estudos de Milgram reforçam a importância de alguns mecanismos de governança. Em relação à proximidade, sessões executivas regulares e comitês apenas com conselheiros independentes deixariam as pessoas mais livres para exercer seu livre-arbítrio. Com isso, visões dissonantes não seriam recebidas como atos de “deslealdade” para com o líder empresarial. Reforça-se, também, a necessidade de maior proximidade entre conselheiros e acionistas, por meio da participação em assembleias ou encontros regulares. À medida que os conselheiros sentissem o “acionista” como um ente menos abstrato e anônimo, poderiam ter propensão a levar em consideração seus interesses.
A discordância entre pares pode ser atendida por uma proporção maior de conselheiros realmente independentes, embutindo-se nesse conceito não apenas relações financeiras, mas principalmente laços pessoais. Uma sugestão de Morck é que os conselheiros independentes atestem formalmente sua independência, ficando sujeitos a punições severas em caso de laços ocultos. Finalmente, tem-se a questão central da presença de uma liderança independente no conselho que sirva de contrapeso ao líder da companhia. Essa figura poderia representar uma autoridade rival positiva, no sentido de induzir a debates mais ricos e críticos.
A abordagem de Morck pode chegar a alterar a definição de governança corporativa, com o tema passando a ser visto não apenas como o conjunto de mecanismos para diminuir conflitos de agência, e ainda evitar os problemas decorrentes da lealdade excessiva a figuras poderosas nas organizações.
Independentemente da questão teórica, as práticas recomendadas — definição mais estrita do conceito de independência, reuniões regulares sem o CEO, comitês compostos de independentes, encontros dos conselheiros com acionistas e liderança independente nos conselhos de peso similar à autoridade interna — são úteis para mitigar os riscos tanto da lealdade insuficiente dos conselhos em relação aos acionistas, quanto da lealdade excessiva à figura do líder empresarial. O resultado tende a ser empresas mais bem governadas, algo positivo para os acionistas e a sociedade.
Fonte: Capital Aberto
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